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SER UM ESTRANGEIRO: a experiência do não pertencer

ESTRANGEIRO

Não ser ninguém

O choque da realidade (acolhimento de fachada)

Nesta reflexão, o acolhimento não se trata de receber turistas, nem participar de festividades típicas. É sobre viver em um outro lugar, tendo que nos integrarmos em um lugar totalmente diferente daquele de onde viemos, fora de nossas próprias bolhas de segurança.

Nas sociedades modernas existe uma pressão sobre como devemos ser dentro das bolhas estabelecidas. Mas, o simples fato de compartilharmos o mesmo espaço e um trabalho em comum, não significa que sejamos acolhidos ou aceitos com apreço verdadeiro, respeito e dignidade! Não ser “de casa” é mais um fator agravante.

A falta de empatia é, hoje, mais uma consequência da falta de segurança entre seres humanos em todo lugar, do que uma simples falta de educação. Aceitamos, tacitamente, a ideia de que qualquer desconhecido é alguém perigoso! Por isto, uma das primeiras coisas com que nos preocupamos quando saímos de nossos portos seguros, ou permitirmos nossos filhos encararem o mundo afora é: como nós e eles saberemos lidar com acolhimentos de “fachada”?

 

A estratégia de sobrevivência (trabalho e discrição)

Além da discutível desculpa para evitar o novo, o diferente e o inesperado, algo incentivado pela cultura do “medo de gente”, sabemos que existe uma acomodação ao “status quo” estabelecido em agrupamentos humanos, em que o controle grupal é organizado, muitas vezes, para manter mimos e privilégios locais. Daí advém a metáfora popular de quem pode “ocupar a janelinha”.

A questão não é impedir a inclusão de uma pessoa diferente ou nova no ambiente, mas tornar como pré-requisito de inclusão um aceite tácito diante de um “status quo”, pelo novo indivíduo. É o que chamamos de adaptação a um lugar diferente, onde uma pessoa recém-chegada é descaradamente atraída para grupos ou panelas, desde o início de sua convivência ou, de forma mais dissimulada, lhe é dada sinais e demonstrações de “dentes”, em meio a sorrisos desconfiados.

Por isto, a experiência de viver como um estrangeiro, ao menos uma vez na vida, é imprescindível para se aprender a não esperar acolhimento falso, não ter expectativas exageradas sobre as pessoas e, para conquistar confiança autêntica, é preciso dedicação e foco, sempre com um “pé atrás”, em qualquer lugar!

 

A transformação interna (empatia e visão abrangente)

Em minha passagem pelo Japão, mesmo como descendente direto de japoneses, tanto por pai como por mãe, encontrei verdades dolorosas. A primeira foi que, como trabalhador e não como turista, jamais fui acolhido conforme minhas origens ancestrais. Sempre fui considerado um brasileiro, jamais um japonês de sangue puro naquele País. Mas, assim também sempre fui um japonês, em meu próprio País natal, Brasil! Esta imprecisão de nacionalidade cria uma condição de enxergar o mundo de forma menos confinada e mais holística.

Esta é a primeira lição: Não devemos esperar acolhimento nem nas mais óbvias situações. Em tudo, mesmo que tenhamos um título acadêmico ou uma trajetória anterior transparente, jamais seremos tratados como esperamos. Neste mundo, aonde ir e vir se tornou algo banal, o trânsito de pessoas de um País para ou outro tem recrudescido a xenofobia, pois é comum os estrangeiros ameaçarem empregos das pessoas nativas.

Aí reside uma segunda lição: Jamais devemos chegar em um lugar pisando alto, ou cheios de autoconfiança, pois o que as pessoas querem saber, primeiro, é se somos adaptáveis à suas peculiaridades ou não! Respeitar a cultura e os costumes de um lugar diferente é uma questão de boa educação, sempre!

Ademais, com o tempo, também faz parte da conduta de um estrangeiro, ouvir mais do que falar e mostrar trabalho pois, de fato, é o que mais conta neste mundo! A terceira lição então é que precisamos somar esforços em um novo lugar, em prol de objetivos comuns, para sermos parcialmente incluídos, senão seremos considerados apenas um peso morto, que só veio para ocupar mais espaço, o que não agrega nada ao grupo ou comunidade local!

A experiência assemelha-se a aprender a nadar em mar aberto. No início, o foco é o medo e a sobrevivência (o "pé atrás" e o esforço para não afundar como "peso morto"). Com o tempo, o nadador para de lutar contra a corrente e entende a imensidão do oceano, percebendo que as disputas na margem (as "bolhas provincianas") são pequenas. Ele se torna "ninguém" perante o mar, mas ganha uma visão do horizonte que quem nunca saiu da areia jamais possuirá.

 

A empatia de quem não é ninguém

Quando um estrangeiro chega em um novo lugar, percebe a vida cotidiana de uma comunidade, enxergando como se fosse um “sapo fora da lagoa”. Ele percebe rapidamente as “panelas” locais, quem organiza ou quem interfere nas decisões! Existe uma certa vantagem desta perspectiva de fora, pois não há necessidade de um estrangeiro estreitar laços com qualquer panelinha, pois aprendeu em sua jornada que neutralizar expectativas muito positivas e saber lidar com as negatividades das relações interpessoais, típicas de agrupamentos humanos é a atitude mais acertada.

Isso representa tanto uma atitude respeitosa em relação às idiossincrasias de cada agrupamento, como também discrição e retidão em relação a costumes e valores locais. É por isso que o apego às “brigas de gatos e ratos” locais não importa para quem já viveu em uma outra civilização, pois esta pessoa reconhece o quão pequenos são as disputas dentro de uma bolha provinciana.

Entretanto, complementarmente, toda pessoa com um entendimento de mundo mais abrangente, pela condição vivida como estrangeiro, não é melhor que ninguém, mas possui uma sensibilidade e uma empatia maior, diante de situações que envolvam exclusão e rejeição entre os sujeitos de um agrupamento humano. É uma habilidade adquirida, justamente, por já ter sido um “estranho no ninho”, em outra situação e isto significa transformar a vivência de sofrimento em ferramenta de fortalecimento.

 

Como aprender ser ninguém

Obviamente ser um estrangeiro não significa ser um extraterrestre não humano! O “ser ninguém” significa que poucos se importam com um estrangeiro e isso é recíproco quanto a apegos e vaidades locais. Também não significa que um estrangeiro é insensível a mal tratos ou mesmo à falta de consideração.

A questão é que na condição de um estrangeiro, há mais o que aprender do lado bom das pessoas e da vida, fazendo o que precisa ser feito! É mais fácil ser objetivo, ter foco e concentrar habilidades pois isso representa a sobrevivência individual de quem se insere em um mundo diferente do próprio, onde até os costumes e trejeitos pessoais ficam em evidência, desde um sotaque incorrigível até a conquista de coisas simples como uma habilitação de motorista. Há mais variáveis incontroláveis, e é isto o que leva um estrangeiro a focar melhor em si mesmo.

O amor-próprio não advém de ninguém, nem mesmo de simpatizantes sinceros. Quando alguém se propõe a viver em uma cultura diversa da sua, já sabe que não terá o consolo de alguém próximo o suficiente para lhe acompanhar nas datas festivas, nem terá total credibilidade, mesmo tendo ótimas ideias.

Assim, no melhor estilo estoico, um estrangeiro não quer controlar tudo, nem ser dono do pedaço, embora com o tempo a receptividade de um grupo local se torne, verdadeiramente, sincera. Mesmo assim, ninguém sabe melhor qual é o seu lugar, do que uma pessoa que já foi ninguém, durante sua jornada pelo mundo.

 

Conclusão

Viver fora de nossas bolhas de segurança exige, primordialmente, a aceitação de que o acolhimento autêntico é uma conquista lenta, baseada na dedicação, na discrição e no trabalho. Ao renunciar à autoconfiança excessiva e ao desejo de controlar variáveis incontroláveis, o estrangeiro aprende a focar naquilo que realmente importa: sua própria retidão e a capacidade de agregar valor à comunidade onde se insere.

A condição de "ser ninguém" deixa de ser um peso para se tornar uma libertação das vaidades e das disputas provincianas. Essa perspectiva de "sapo fora da lagoa" permite que o indivíduo neutralize expectativas e desenvolva uma visão holística, transformando o sofrimento da exclusão em uma poderosa ferramenta de fortalecimento e empatia para com outros excluídos. O amor-próprio, nesse contexto, deixa de depender de "simpatizantes sinceros" e passa a brotar da própria resiliência interna.

Portanto, ser estrangeiro é como aprender a nadar em mar aberto. No início, a luta é contra a correnteza e o medo de se tornar um "peso morto". No entanto, ao abraçar a imensidão do oceano e a própria insignificância diante dele, o indivíduo para de lutar contra o que não pode mudar e ganha uma visão do horizonte. É nesse estado de desapego e foco que se descobre que ninguém conhece melhor o seu lugar no mundo do que aquele que já teve a coragem de ser "ninguém" em terras estranhas.

 

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