O legado da liberdade e plenitude
A tarde inesquecível
Ainda
me lembro daquela tarde, quando ao lado do meu querido pai, o assisti fazendo o
que ele mais gostava. Um dia especial de pescaria que ficaria na memória, pois
foi a última vez que o vi praticando seu esporte preferido.
Naquele
dia, como ele sempre fazia, preparou logo cedo suas traias de pesca, sua
caixinha de equipamentos e suas iscas caseiras. Ele tinha uma receita que usava
farinha de mandioca cozida para fazer umas bolinhas que ele caprichosamente
envolvia com fubá, e que eram iscas práticas para usar, pois não se soltavam fácil
do anzol.
Algo
inesquecível nele era aquele sorriso maroto de felicidade quando nos reuníamos para irmos aos nossos pontos de pesca preferidos, lugares que marcaram nossas
histórias. Seu costume, ao chegar no pesqueiro, era estudar o melhor
lugar para colocar suas varas de pesca. Ele analisava a correnteza, a
profundidade e o tipo de vegetação próximo às margens do rio, até identificar o
ponto que ele achava ser ideal para pescar.
Sempre
admirei sua paciência e persistência, pois não era o tipo de pescador que
ficava andando para lá e para cá, tentando encontrar os peixes. A pesca para
ele era um ritual, pois era também um momento de meditação, algo que
servia para apreciar a natureza, escutar o barulho da água, sentir o ar puro e
ouvir o canto dos pássaros, enquanto esperava alguma puxada na
linha.
Momentos mágicos
Em
todas as nossas pescarias, havia momentos mágicos. Naquele dia, não foi diferente!
Bem no fim da tarde, a linha começou a correr, balançando a ponta da vara com
puxões fortes que a fizeram envergar. Neste momento ele deu a fisgada, puxando a
vara para trás, para confirmar que o anzol se prendesse no peixe, que começou a
tomar a linha do molinete. Eu adorava vê-lo travando aquela luta, mantendo a
tensão ideal para que a linha não arrebentasse e esperando que o peixe viesse à
superfície, fazendo aquele movimento de ondas característico, quando um pescador pode vislumbrar o tamanho e a espécie do peixe.
Ele
tinha uma técnica que consistia em não puxar o peixe apressadamente, mas
esperar até que ele cansasse. Ele também não descuidava para não apontar a vara
de pesca para a água, para que o peixe, ao dar um solavanco mais forte não
arrebentasse a linha. Por isso, dependendo do tamanho do peixe, ele ficava
apreciando a briga, prolongando o prazer do momento.
Observei
ele retirando o peixe para fora d´água, com aquele sorriso no rosto, de intenso
contentamento. Nosso costume sempre era pescar e levar os peixes para casa.
Enquanto limpávamos os peixes pescados sentíamos uma alegria especial, um forte
sentimento de pertencimento, de comunhão e de entrega. O fim de um dia de
pescaria era repleto de simplicidade, gratidão e sintonia com o céu estrelado,
algo marcante em nossas memórias de família.
Aprendizagens
Talvez,
minha afinidade com a natureza tenha sido adquirida justamente por estes
momentos em minha memória. Isto é algo que fez parte de minha vida, desde
criança até me tornar adulto, e que passo hoje para meus filhos, como
ensinamentos do avô deles. Aquele último pôr do sol selou todas as lições
aprendidas ao longo de sua vida, servindo como uma síntese de todas as
pescarias.
A
primeira lição é que mesmo que voltássemos para casa sem peixes, isto não
era o mais importante, mas sim que nos divertimos juntos. A beleza daqueles
momentos de companhia, parceria e integração com a natureza, compensava
qualquer resultado.
A
segunda lição talvez seja sobre a simplicidade da vida e a felicidade que ela
nos traz. Nunca fizemos grandes pescarias, nem fomos aos melhores lugares onde
os grandes pescadores frequentam, mas acredito que mesmo que se tivéssemos ido,
sentiríamos o mesmo que sentimos em nossas pescarias simples. Aí estava a magia
de tudo!
Por
fim, a terceira lição foi sobre aprendizagem, pois aprendemos a pescar
pescando, errando, acertando, experimentando e apreciando cada momento, com
legítima motivação. Assim, sabíamos identificar as mudanças do clima, das fases
lunares, aprendemos sobre as espécies de peixes e como dar nós nas linhas,
cuidar dos equipamentos de pesca e preservar a natureza.
O legado
Com
gratidão, relembro a alegria e a saudade que se misturam com aprendizagem,
propósito, sentido de vida e simplicidade junto à natureza criada por Deus. Toda
vez que assisto a um pôr do sol, as memórias dessas pescarias voltam à minha
memória. Mesmo meu pai sendo uma pessoa sem formação acadêmica, com sua
didática própria, me transmitiu o saber de como é viver a vida com significado.
Mesmo
sob dificuldades e adversidades, permitiu a mim e a meus irmãos termos momentos
incríveis que jamais serão esquecidos. Um sentido claro de vida, onde podemos
nos desapegar das preocupações e trocá-las por momentos leves, de harmonia com
a natureza e com paz interior.
Neste contexto, aprender com emoção e empatia é o melhor caminho para uma aprendizagem significativa. Por isto, hoje sei que a cada lindo pôr do sol, que representa o fim de um dia, em ciclos repetitivos, também é uma ótima metáfora para nossas partidas deste mundo, onde ficam a memória e a gratidão pelas aprendizagens alcançadas.
Não importa como ele se foi, mas sim a companhia e seu exemplo de entrega para a vida e o que nos compartilhou, com generosidade, enquanto pode estar conosco! O sentimento de liberdade genuína e a noção de plenitude, é o sentimento final que remete àquele último pôr do sol!
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